Marcos Capuzzo, advogado da Barbosa Advogados. Especialista em Direito empresarial, societário e recuperação judicial.
Foi com surpresa e descalabro que a pandemia causada pelo Covid-19 chegou ao Brasil. Em algumas cidades, como Manaus, os sistemas de saúde e funerário já entraram em colapso, o que acarretou na morte de dezenas de pacientes nas filas dos hospitais antes de receberem qualquer atendimento médico.
Na tentativa de mitigar as causas nefastas causadas pela pandemia, o governo federal decretou estado de calamidade pública, o que foi seguido por governadores e muitos prefeitos que, ressalvados alguns serviços essenciais, determinaram o fechamento do setor produtivo.
Apesar de necessárias, essas restrições trouxeram graves entraves às atividades econômicas, sobretudo porque a maioria das empresas tiveram acentuada queda no faturamento, porém, sem se eximir de obrigações correntes, como pagamentos de salários, tributos, fornecedores e empréstimos financeiros.
Para melhor ilustrarmos a dimensão do provável impacto sobre a economia, no dia 14 de abril, o Fundo Monetário Internacional publicou um estudo que já indicava que essas consequências acarretarão na maior recessão mundial desde a Grande Depressão de 1929. No início de maio, Steven Mnuchin, Secretário do Tesouro dos Estados Unidos, admitiu que o índice de desemprego, que em dezembro de 2019 registrou 3,5%,em alguns meses deverá atingir pelo menos 25% e poderá superar à da crise de 1929.
Diante desse cenário sem precedentes, a maioria das empresas encontra-se na iminência da bancarrota, o que deverá desaguar na ampliação na taxa de desemprego acompanhada de forte recessão econômica e aumento das mazelas sociais.
No afã de aliviar essas consequências, o Poder Executivo editou diversas medidas provisórias, entretanto, sem a tutela de empresas em recuperação judicial. Convém ressaltar, entretanto, que perante o Poder Legislativo tramitam projetos de leis emergenciais para mitigar os prejuízos que assolam as empresas em recuperação judicial, com destaque para o Projeto de Lei n.º 1.397/2020, de autoria do Deputado Federal Hugo Leal.
Para ter vigência durante o período de estado de calamidade, esse projeto busca alterar e suspender a eficácia de alguns dispositivos da Lei n.º 11.101/2005, como a suspensão automática por 120 dias da exigibilidade de créditos concursais, a tutela dos interesses de devedores não contemplados pela legislação falimentar e a introdução da figura do negociador.
Dentre as principais medidas de socorro às empresas em recuperação judicial, o importante Projeto de Lei n.º 1.397/2020 não abordará a principal causa das dificuldades: a escassez de recursos financeiros a devedores com restrições de crédito no mercado financeiro. Caso esse importante projeto seja aprovado sem alterações, a referida moratória não impedirá o inadimplemento de obrigações, mas postergará a sua ocorrência.
Como alternativa, o projeto poderia determinar que, sem exigir apresentação de certidões negativas de débitos, nem outorga de garantias, bancos de fomento contemplassem linhas de créditos para que a empresas em recuperação judicial que pudessem demonstrar ser cumpridoras de função social e ser minimamente viáveis à recuperação. Para essa hipótese, a gestão desses recursos financeiros deveria ser realizada pelo administrador judicial.
Como resultado, os maiores beneficiados de tais medidas não seriam os empresários, que podem ser afastados de suas atividades administrativas, mas a coletividade de credores e o conjunto de trabalhadores que teriam seus empregos assegurados à manutenção de suas famílias, protagonistas da boa saúde econômica do país.
No que atine ao crédito de natureza tributária, o qual não se sujeita aos efeitos do processo de recuperação judicial, parece-nos essencial a revogação urgente de dispositivos legais de constitucionalidade questionáveis, como a atual possibilidade de imposição de multas de caráter confiscatório de até 150% sobre o valor do tributo devido.
O Poder Judiciário agiu rapidamente e no dia 20 de março o Conselho Nacional de Justiça (“CNJ”) publicou a Recomendação n.º 63 que, em síntese, sugeriu que os juízos prorrogassem o prazo de stayperiod, adotassem Assembleias Gerais de Credores virtuais, e que priorizassem a concessão de levantamentos de valores eventualmente bloqueados, seja em favor dos credores,seja das devedoras.
Nesse sentido, recentemente o Superior Tribunal de Justiça priorizou um caso e determinou o soerguimento de deposito em juízo há mais de quatorze anos por empresa em recuperação judicial (REsp. n.º 1.746.596-SP – 2018/0228703-9).
Outra medida judicial de inclinação pós-positivista que vem sendo adotada é a autorização para a realização de Assembleia Geral de Credores em formato virtual. Antes do surgimento da pandemia, o Poder Judiciário do Estado de São Paulo já havia homologado o Plano de Recuperação Judicial da Mineradora Zamin aprovado em Assembleia virtual e mais recentemente admitiu a Assembleia virtual que aprovou o Plano de Recuperação Judicial do Grupo Odebrecht.
Em meio aos desafios que recaem sobre o processo de recuperação judicial, discute-se se o Poder Judiciário poderia alterar cláusulas estabelecidas em Plano de Recuperação Judicial já homologado sem a anuência de uma das partes.
Com base na teoria da superação do dualismo pendular, já adotada pelo Superior Tribunal de Justiça no julgamento do agravo de instrumento no Resp 1308957/SP, a interpretação não deve prestigiar o interesse de credores, tampouco da empresa devedora, mas atingir o objetivo da recuperação judicial, vale dizer, quando possível, viabilizar a preservação da função social da empresa.
Por ser espécie de contrato, o Plano de Recuperação Judicial tem suas normas gerais previstas no Código Civil com as especificidades previstas na Lei 11.101/2005. Em seu artigo 478, combinado com o artigo 479, o Diploma Civil prevê que quando surgirem acontecimentos extraordinários e imprevisíveis que tornem a prestação de uma das partes excessivamente onerosa, poderá a parte onerada pleitear a extinção do contrato, ou a modificação equitativa das condições do contrato.
Nessa esteira de raciocínio, há que se buscar a manutenção das atividades deficitárias que se mostrem economicamente viáveis, que comprovadamente gerem empregos, contribuam para o fornecimento de produtos e serviços aos consumidores, aumentem a circulação de capital e permitam a arrecadação tributária, ainda que de maneira parcelada.
Nesse sentido, empresas em recuperação judicial que possam demonstrar o cumprimento da função social e razoável viabilidade econômica que estejam à beira da falência, devem socorrer-se ao Poder Judiciário mediante pedidos de tutela de urgência, devidamente instruídos com os requisitos imprescindíveis à sua concessão: fumus boni iuris e periculum in mora, em especial para garantir a efetividade da Constituição Federal.
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